O que o futuro me roubou
Quando eu era criança eu tinha um herói também mirim, mas era de verdade,
não era como esses de ficção, ele era meu primo e amigo e brincava comigo, ele
me protegia e me motivava nas superações. Ele me emprestava o seu tesouro para
eu brincar, era uma bicicleta com protetores de guidão amarelos, ele me fazia
acreditar que podia atirar com a baladeira como um menino e caçou bravamente o
escorpião que picou o meu pé quando eu tentava subir no pé de umburana. A gente
passava o dia inteiro no mato, caçando pássaros e seus filhotes, comendo umbu,
resina de angico, frutos de coroa de frade e batata de algumas plantas que nem
conhecíamos, as vezes nos distanciávamos muito de casa e íamos até a barragem
do Teobaldo, o sol era muito quente, mas não lembro de senti-lo, e também não
me recordo de nenhuma briga com ele, acho que não havia espaço para isso, eu me
recordo mesmo é das experiências novas que tínhamos como dá a volta no parte
vazia dos barreiros pela metade de água sem cair, pular mais alto nas traves
que fazíamos com os fedegosos enfrente a casa do Vô, lembro bem dos espinhos de
mandacaru e de cansanção que insistia em nos espetar nas nossas bravuras pela
caatinga. Éramos muito felizes.
A medida que ia crescendo eu ouvia das pessoas para eu brincar com as
minhas primas, que eu precisava me comportar mais como menina, fui sentindo as
mudanças no meu corpo e meu comportamento mudou sem que eu me desse conta,
então pisquei e eu era adulta, cheia de responsabilidades, vontades e nem percebia
que estava sendo roubada pelo tempo. Não sei onde na linha do tempo eu me
desvinculei de meu pequeno grande herói, e a cada dia eu ficava mais distante,
nos meus anseios de conquistar o mundo eu perdi o meu tesouro, mal sabia que
nunca mais o teria de novo, fui embora vazia do que eu nem sabia que havia
existido. Hoje, de repente vendo uma séria coreana, eu percebi o tamanho do
crime que o futuro da minha infância cometeu, ele me roubou a força, se
aproveitou de meus sonhos, me afastou e me causou uma espécie de amnésia
temporal, e mesmo que eu tenha conseguido alcançar o mundo com que sonhei em
tudo isso, não é suficiente para resgatar o meu bem roubado.
Já faz alguns anos que eu soube que meu primo estava com problemas
psicológicos, na época eu estava ocupada demais com meus sonhos para parar e
entender melhor a situação, como uma pessoa comum eu lamentei, mas nada fiz, o
tempo foi passando e eu fui sabendo das notícias da evolução da sua doença,
doença essa que até hoje não sei o nome, saber que ele fica agressivo,
principalmente com os pais é muito difícil, para onde foi aquele menino
bondoso, protetor e divertido? Gostaria de poder voltar no tempo, refazer meus
sonhos, não abandonar ele nunca, fortalecer ele em tudo para se tornar o adulto
com aquelas características que tinha quando era meu herói, mas não é possível,
então como posso ser a heroína que ele precisa hoje? Também não sei, e isso
dilacera meu coração de uma forma inimaginável.
Ainda procuro respostas para salvar ele dele mesmo, provavelmente nem mereço mais os seus cuidados, mas mereço a paz de ver ele bem e feliz, já seria a recompensa de sua bondade.
Eu não desisti, e um dia eu vou te resgatar, meu
querido M.R!
De alma, da sua prima!
V.R